EXISTEM MUITOS BICHINHOS. MUITOS SÃO BONITINHOS OUTROS NÃO. HÁ AQUELES QUE NÓS PODEMOS TOCAR E HÁ OS QUE SÃO PERIGOSOS MAS, TODOS ELES MERECEM NOSSOS RESPEITOS.

NO DIA EM QUE CHEGARAM OS CACHORRINHOS...

Foi um acontecimento surpreendente! Por um instante o que parecia ser mais uma tarde qualquer virou do avesso. Primeiro vieram os gritos: agudos, desesperados. Então eu saí de minha casa e fui olhar o que se passava. Eles estavam perdidos em algum lugar depois do rio. Olhei entre as gretas do portão de madeira, não via nada; mas sabia que minha rotina iria mudar. Naquela tarde, naquele dia novo, não faria minha caminhada nos horários habituais...

Assim pensava a Flor, uma cadelinha Pastora Suíça. Legítima, segundo a dona. E de fato era. Flor chegara naquela casa ainda bem pequena. Branquinha, como nata de leite. Desprotegida de si e dos outros. Peluda durante os invernos, para se proteger do frio. Sofrível durante os verões, devido ao intenso calor de um país tropical, bem diferente do clima gelado de onde sua raça viera. Não conhecia ninguém. Deixou-se ficar conhecida.
Reinara até ali como a única herdeira do trono. Filha e princesinha dos pais – que nunca aceitaram usar o termo “proprietários”, visto que ninguém pode possuir ninguém, apenas amar e ser amado pelo próximo.
Leite, água fresca, ração de boa qualidade. Uma vida diferente e digna. O que todo ser vivo, seja planta ou animal merece. E Flor adaptou-se ao convívio de outros, diferentes da sua espécie. Tinha ciúmes, é claro! Vigiava todo o quintal. Se alguém estranho aparecesse, deveria, em primeiro lugar, ser apresentado à digníssima e honrada jovem Flor. Caso contrário... latidos e avanços dentro da razão.
Pelos no chão, correria por toda parte. Um gato que ficava assustado, bandos de passarinhos que passarinhavam pelo terreiro, tapetes e chinelos rasgados, um bife flertado durante o almoço e até veneno! Foram artes da juventude dessa cadelinha. E nos passeios... cheiro naquele poste, rolamento na grama e um cheirinho ruim... Flor se esponjara numa carniça! Agora um banho daqueles, até ficar novamente princesa de baile, como nos filmes americanos.
E a vida foi seguindo...
Flor esperava, naquela tarde, o chamado para a caminhada rotineira. Já havia rondado a casa, cheirado um farelo aqui, uma pegada ali, um passo acolá. Deitou-se e, fechando os olhos, refletia sobre o milagre da vida. Quando, um grito triste a pôs de orelhas em pé. Imediatamente procurou saber o que era. Jamais ouvira algo tão melancólico e solitário. Levantou-se e seguiu em direção ao portão de madeira, que dava vista para o rio. Dois cachorrinhos foram abandonados por um ser humano desse que se diz “pensante”. Uivavam, choravam, diluíam-se num lamento de doer o coração. Flor não se conformava. Precisava dar um jeito na situação. Como pode um ser vivente ser deixado sem comida, sem água, sem companhia de uma mãe ou de alguém que represente uma proteção.
Inconformada, demonstrou atitude de piedade: subia no muro, tentava alcançar melhor ponto de observação. Olhava na porta da cozinha, lamentava consigo mesma. Ao que foi atendida.
Guiando sua “mãe” adotiva fez a travessia incomum para os seres humanos: ajudar o próximo. O caminho entre deixar o egoísmo de ser apenas um e pensar que existem outros. São momentos em que uma espécie tem a oportunidade de sair de seu próprio mundo, pequeno e mesquinho, para compartilhar o que os idealistas chamam de caridade. Estas horas, que ocorrem todos os dias, normalmente ficam ignoradas. Pensamos tanto em algo que está distante, para além do tempo e do espaço, que não enxergamos um filetinho de vida que está aos nossos pés, implorando apenas um olhar de carinho.
E Flor encontrou algo em sua busca. Assim como nós também sempre encontramos, para o bem ou para o mal.
Não eram dois cachorrinhos. Ou melhor, não eram machos; mas, fêmeas. Duas coisinhas de nada, encolhidas, grudadas uma na outra para que, em duas, diminuísse sua miséria.
Flor cheirava as criaturinhas. Este é o seu jeito de conhecer as coisas. Um dia os homens também entenderão assim. Deixarão de ver com os olhos e passarão a enxergar de verdade.
Como flor enxergou, naquela tarde...
...sujinhas, pulguentas, com fome e sede. Certamente estão com medo. Lá em casa terão minha ração e meu leite. Beberão da minha água e comerão do meu pão. Serão cuidadas até que encontremos sempre um lugar seguro, com aquele que mereça a bênção de ser pai e aquela que seja digna da palavra mãe. E um dia, quando deixarem este mundo, levarão a sabedoria de que viveram realmente o milagre da vida.
Wagner Fernandes Fonseca, 20 de abril de 2011.